CÂMARA CASCUDO
Algumas palavras desse pensador e professor nordestino que nasceu em Natal (RN) e viveu de 1898 a 1986.
Sobre o que somos ou deveríamos
ser...
Creio na bondade
sem a garantia prévia da gratidão. Sem que se assegure da memória devedora. Sem
que se estabeleça, pelo ato generoso, uma servidão vitalícia no beneficiado. Bondade
paga-se no puro e simples ato de sua realização. Como um fruto justifica a
existência útil da árvore. Bondade antevendo a recompensa é apólice de
sociedade mutualista rendendo do capital intocável do favor inicial. Os
pássaros não são devedores dos frutos e da água da fonte. Eles testificam,
perante a natureza, a continuidade da missão cultural.
(O Tempo e Eu. Cascudo, Luís da Câmara. Natal:
UFRN/Imprensa Universitária, 1968)
Sobre a Vida e a Passagem do Tempo...
Hora de recolher...
Ao alvorecer, mandei minhas caravanas na pista da vida. Para o amor, à glória,
ao poder, à fortuna, à amizade... Voltam ao anoitecer. Uma perdeu-se no
deserto, varrida pelo turbilhão de areia, perseguindo miragens. Outra está
vazia. Esta, exausta, nada conquistou. Aquela trouxe alguma esperança. O sol
desce no horizonte vermelho. A sombra nos cobre. Tranqüilo, ao pé da tenda,
olhando o poente, aguardo o regresso da última caravana.
(Citado em O Colecionador de Crepúsculos. Barreto, Anna Maria Cascudo.
Brasília: Senado Federal, 2003)
Pertenci ao século
das transformações e dos contrastes. Assisti ao acender dos lampiões, quando
Natal não tinha luz elétrica; vi carros-de-boi e remei de iole, passando em
frente onde é hoje o Teatro Alberto Maranhão. Pela televisão, observei o homem
descer na lua (com o pé direito, mostrando que as superstições são eternas);
sou testemunha desta absurda verticalização, da triste ausência dos quintais, e
já voei (apavorado) nos mais modernos aviões que encurtam distâncias. Mas
encaro tudo com normalidade. A inteligência, em última análise, é a capacidade
de adaptação.
(Citado em O Colecionador de Crepúsculos. Barreto, Anna Maria Cascudo.
Brasília: Senado Federal, 2003 )
É evidente que somos bem pouco, muito
pouco felizes com a espantosa aparelhagem possuída para fazer-nos conhecer a
terra, céu e mar. A vida tornou-se febril e nas cidades grandes são anfiteatros
onde o homem se debate, sofrendo como se fosse submetido a uma vivisseção. Os
complexos tradicionais de “amigo”, “compadre”, “companheiro” sofrem restrições
calamitosas e vão cedendo à maré montante dos interesses crescentes. Vivemos
sob o signo da angústia. Angústia significa justamente o nosso estado de
compressão, opressão mental, asfixia econômica, hostilidade ambiental.
(Canto
de Muro. Cascudo, Luís da Câmara. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1959)
Sobre o seu ofício (preferido)...
Não havendo amor,
quase carnal, com a sua especialidade, o professor é um carregador de palavras
imóveis e não um piloto de memórias vivas. Aula não é filme, reproduzindo
indefinitivamente atos de verismo impecável, mas representação em palco aberto,
onde cada exibição é uma atitude responsável e insuscetível de revisão
retificadora.
(Citado em O Colecionador de Crepúsculos. Barreto, Anna Maria Cascudo.
Brasília: Senado Federal, 2003)
Sobre o Amor (o seu Amor)...
Domingo, 21 de
abril, 39º aniversário do meu casamento. Ao despertar, a noiva de 1929
desaparecera. Fora assistir à missa na capela do Hospital. De regresso, beijos,
abraços, congratulações. Dáhlia declara não estar arrependida e me confesso
capaz de reincidência com a mesma vítima.
(Pequeno Manual do Doente Aprendiz. Cascudo, Luís da
Câmara. Natal: UFRN/Imprensa Universitária, 1969)
Mais do mesmo: http://www.cascudo.org.br